terça-feira, 18 de maio de 2010

Blog: Astronauta Libertado, maio 2010.

Diretor: José Joffily

Comecemos por dizer assim: tudo o que viu e tudo o que via transladava para além de seus olhos muito azuis ecoou para além de sua cabeça, transladando como fotografias móveis e líquidas, lavando toda a via crucis de sangue e álcool.
Ele não é o narrador, mas a narração do filme – nunca óbvia, esta narração que quase sempre não se dá com palavras, mas com pontos de vista: as câmeras – centra-se em seus olhos e aquilo que vêem e viram. O ele é Marshall (David Rasche). As câmeras, suas extensões.

Então é assim: o narrador do filme é esta câmera muito próxima dos passos do chefe do Departamento de Imigração do aeroporto JFK, em Nova York, juntamente com os ruídos dos seus passos: por breves momentos a narração distancia-se do protagonista, vigiando aquilo que o cerca como uma sombra curiosa, como na cena dos poetas argentinos correndo em direção à luz da saída do aeroporto.

A narrativa segue então crua, num realismo que fere. A tensão é constante durante o enredo. O filme começa com uma aparente intenção entorpecente, num aparente envolvimento vertiginoso. Mas as feridas abertas muito reais puxam rapidamente o espectador para uma materialidade bruta. Não há torpor. A viagem é feita sóbria.

Em outras palavras, o filme começa confuso e estonteante, alternando cenas do passado, do presente e de imagens de uma câmera de vídeo. Alguns elementos inauguram a tentativa de embriaguez, como a “entrada” no vídeo da câmera: ao invés de mostrar a imagem da imagem da câmera, mostra-se diretamente a tela digital como apresentação. Outro elemento deste tipo seria a alternância de ambientes culturais: não só a alternância entre o Brasil e os EUA, mas a mudança de tipo de lugar: no primeiro, trata-se de uma jornada incessante de Marshall em busca de sua redenção, acompanhado por Bia (Cristina Lago), numa aventura a céu aberto; no segundo, um aeroporto, um lugar indefinível culturalmente, num jogo intrincado e paralisado, num pesadelo vivo em que não há aventura, pois não há obstáculos a serem superados, há apenas um departamento colocando-se como grande porta entre os imigrantes e os EUA.

E nestes próprios lugares constitui-se a realidade sóbria. Logo o espectador percebe que não há magia (positiva ou negativa – não há) nos ambientes retratados. Há um Brasil de destino malogrado, que tem suas próprias mazelas sangrando; há destinos, no não lugar que se chama aeroporto, que se caracterizam por um amálgama de sonhos flutuantes ameaçados por um cavalo de fogo. Este cavalo é o último dia de trabalho de Marshall, com seus companheiros de trabalho Sandra (Erica Gimpel) e Bob (Frank Grillo). Como despedida de trabalho, Marshall resolve divertir-se danando a vida dos imigrantes. Isto é o passado. O presente é a sua viagem ao Brasil, buscando aquele cálice sagrado que pagará os seus pecados.



Um desses imigrantes é o professor brasileiro Nonato (Irandhir Santos), atormentado até os nervos pela diversão de Marshall.

Sobre Nonato: talvez o mais óbvio seja deduzir que ele representa – como ele próprio deixa bem claro em seu momento de fúria no filme – os olhos pretos da América Latina enfrentando seu algoz Norte Americano, por conta da irresponsabilidade histórica deste sobre aquela (e aqui falo de medidas político-economicas norte-americanas que causaram tragédias econômicas e sociais na América Latina). Talvez o menos óbvio (e não mais nem menos importante por isso) seja perceber que os olhos pretos de Nonato são olhos muito humanos. E aqui falo de Irandhir Santos, que é homem também. Há uma veia que atravessa a face de Nonato, e essa veia fala também de amor, fala de ódio, fala de muitos outros sentimentos contraditórios que compõem o ser: há atrás da veia um ponto cego no existir, há atrás da veia sangue preto e pisado, imperfeito. A princípio soou estranho a mim quando Nonato levantou-se e se enfureceu. Depois entendi. Só depois de ver a veia cortando-lhe a cara entendi. E isso diz respeito à grandiosidade de Irandhir.



Sobre Marshall: não pude evitar compará-lo a um protagonista de uma literatura líquida nacional (como o personagem principal de Hotel Atlântico, ou o de Estorvo, ambos anônimos, de Noll e Buarque, respectivamente) com a qual tive contato recentemente. Talvez os tempos estejam mesmo dizendo alguma coisa a nossos artistas. Marshall é um homem fragmentado, cortado e líquido: um homem condenado a morte já no princípio do filme, e caminha em direção a ela, não importando seu passado distante, não importando o caminho (o importante é caminhar), quase não importando o lugar de chegada. Quem o aguarda é Luiza, e não a terra prometida.


Olhos azuis estréia dia 28/05/2010. A sensação de tensão prossegue, junto com algum sentimento de medo. Medo de sei lá quê. Talvez da vida crua.
Site oficial: http://www.olhosazuisfilme.com.br/

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