sexta-feira, 28 de maio de 2010

Sobre trauma e humilhação

Laboratório Pop, por Daniel Passi, maio 2010.



Olhos azuis conta a história de Marshall (David Rasche), chefe do departamento de imigração americano, que no último dia antes da aposentadoria resolve se divertir à sua maneira, detendo um grupo de latino-americanos e expondo-os a situações humilhantes. Alcoólatra, com seus atos Marshall faz a noite tomar um rumo inesperado. Anos depois, usando como referência um vídeo dentro de uma câmera portátil, ele sai à procura de uma pequena menina por Pernambuco, contando com a ajuda da prostituta Bia. Este é um filme sobre palavras. Aqui elas agem como bombas e parecem ter o mesmo peso dos galopantes tambores de maracatu que abrem os letreiros iniciais.

Como uma grande lavação de roupa suja sem restrições morais, Olhos azuis nos mostra o ódio e o rancor ocultos de uma nação traumatizada pós 11 de setembro, representada pela figura de Marshall. Dirigido por José Joffily (Dois perdidos numa noite suja), ganhador do Festival de Paulínia de Cinema 2009, trata-se também de um filme sobre contrastes. Dicotomizam rico e pobre; claro e escuro; espaços claustrofóbicos e abertos. Não há hesitação em jogar o espectador de um lado para o outro, criando com essa agilidade uma intensa carga dramática.

Duas histórias acontecem paralelamente. Uma, em flashback, se passa inteiramente dentro do sufocante espaço do departamento de imigração de um grande aeroporto americano. Com uma iluminação fria e sons de vertigem ao fundo, a realidade é exposta de maneira crua. Para tal, Joffily lança mão de um tom documental, alcançando, porém, um nível de veracidade maior do que qualquer documentário conseguiria atingir. Talvez este seja o aspecto mais perturbador da obra — isto pode estar acontecendo neste momento, em qualquer aeroporto americano, e não há nada que possamos fazer.

Todos os personagens presos neste limbo são uma síntese, uma unidade representando um drama coletivo. Embora postos no mesmo saco latino pelos oficiais, fica clara cada particularidade. Temos o mestiço brasileiro que, saído de uma pequena cidade do interior, tenta a vida em outro país (impossível não vir à cabeça a imagem de Jean Charles); a dançarina cubana morena que mesmo conseguindo um visto cultural ainda assim é importunada por conta de Fidel; a equipe esportiva com traços andinos.

O casal de poetas argentinos é a inteligente escolha que o filme faz de não vitimizar ninguém: embora estejam saindo de Buenos Aires por não conseguirem grande aceitação de seus trabalhos, financiam sua ida traficando cocaína para os "viciados americanos", escondendo a carga dentro de seus livros (detalhe para o hilário título: Poesias y algo más).

Na situação de fragilidade em que todos se encontram, os viajantes são submetidos por um Marshall cada vez mais alterado pela garrafa de Jack Daniels que consome desde o começo do expediente e sua equipe (uma negra e um descendente de mexicanos) a tormentos desnecessários. Em especial o brasileiro Nonato (interpretado com vigor por Irandhir Santos em cartaz com Quincas Berro D’água e como a voz do protagonista itinerante de Viajo porque preciso, volto porque te amo). Na escalada de acontecimentos que se seguem, o que vemos é a reação natural de qualquer ser humano exposto a abusos físicos e psicológicos, seja ele latino, americano ou árabe — a razão é deixada de lado, torna-se então uma bomba relógio ambulante.

Corta para os grandes espaços abertos de Petrolina. Da excessiva organização burocrática do aeroporto somos jogados para Recife durante o carnaval. Da iluminação fria e artificial, para a brutal luminosidade do sertão pernambucano. Agora com todo o lirismo de um road movie, vemos Marshall, doente e alcoólatra, buscar anos depois sua redenção, como em todo filme do gênero que se preze. Para isto conta com a ajuda de Beatriz (Cristina Lago), perfeitamente a imagem estadunidense de um país latino-americano — uma prostituta com um vocabulário importado do lixo cultural estrangeiro, abundância de shits e fucks. No emocionante desfecho da história, mais uma vez a força das palavras é celebrada, mesmo que aqui sejam as que não são ditas.

Embora todos os atores estejam no tom, é David Rasche quem mostra sem dúvida uma das melhores atuações de sua carreira. Pouco conhecido do público brasileiro, foi definitivamente uma escolha acertada. Destaque também para Frank Grillo que interpreta Bob, o outro oficial de imigração. Grillo e Rashe, ao pesquisarem para o papel em aeroportos americanos, alcançaram um realismo embasbacante.

Simbólico, Olhos azuis é um dedo na ferida ainda bastante aberta do preconceito que o fará ficar sentado na poltrona depois que aparecerem os letreiros finais. Um dos poucos filmes atuais que faz o que uma boa obra de arte tem de melhor. Isto é, ser um fomentador de discussões. Olhos azuis é um filme obrigatório.

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