terça-feira, 18 de maio de 2010

Expurgo de pecados na busca pela humanidade

Do Blog: Doidos por Cinema, por Carlos Bacellar, maio 2010.

Credenciado pelos seis prêmios que arrematou no Festival de Paulínia 2009 − melhor roteiro (Paulo Halm e Melanie Dimantas), melhor atriz (Cristina Lago), melhor ator codjuvante (Irandhir Santos), melhor som (José Moreau Louzeiro) e melhor montagem (Pedro Bronz) −, a produção “Olhos azuis”, novo longa do diretor paraibano José Joffily, aquece os motores para sua estreia no circuito nacional, marcada para o próximo dia 28.

Ontem à noite, num esforço sob o binômio divulgação/medição da receptividade do público, foi realizada sessão exclusiva do filme para blogueiros, no Unibanco Arteplex. E o Doidos marcou presença.

“Olhos azuis” é um thriller que abarca elementos de suspense, drama e aventura policial. O elenco cosmopolita é formado por atores americanos, argentinos, hondurenhos e brasileiros.

O primoroso roteiro de Halm e Dimantas – que, infelizmente, ficou congelado durante nove anos, aguardando viabilidade – ganha movimento e colorido hipnóticos por meio das lentes de Joffily, e nos leva à reflexão.

Somos apresentados ao chefe da imigração do Aeroporto JFK (Nova Iorque), Marshall (David Rasche), que, em seu último dia de trabalho, resolve extrapolar sua autoridade e abusar de um grupo de latinos que deseja entrar nos EUA. Entre eles está Nonato (Irandhir Santos), um brasileiro radicado nos States que retorna ao país após visitar a filha no Brasil; Assumpta (Valeria Lorca) e Martin (Pablo Uranga), dois poetas argentinos que acreditam que seus versos terão melhor ressonância na terra do Tio Sam; Calypso (a encantadora Branca Messina), uma bailarina cubana; e um grupo de lutadores hondurenhos, liderados por Augustin (Hector Bordoni).
 
Ladeado por dois subordinados que almejam uma promoção que engordará seus salários − Sandra (Erica Grimpel) e Bob (Frank Grillo) −, Marshall leva os imigrantes ao limite, expondo-os a situações cada vez mais constrangedoras. Descontrolado pela bebida, que entorna como se fosse água, o chefe da imigração acaba jogando o livro de conduta profissional no lixo e humilha Nonato até o ponto em que a indignação atropela a paciência. Tal atrito gera um confronto de consequência trágicas.

O duelo entre os dois atores produz um dos mais belos momentos do cinema. A sinergia dramática lembra, não por acaso, o desempenho de Christopher Walken e Dennins Hopper em “Amor à queima-roupa”, de Tony Scott. Talvez a troca de diálogos mais antológica das últimas décadas. Nas duas situações, dois talentos entram em rota de colisão: um entorpecido pelas drogas (não preciso comentar sobre Hopper, não é verdade?), o outro acuado pela aflição fruto da humilhação degradante. O embate expõe a chaga da paranoia americana, que não parou de infeccionar após os atentados de 11 de setembro de 2001, em contraponto com o desespero de cidadãos latinos que só querem tocar suas vidas de forma digna.

Com o espírito empalado pela culpa, o americano parte numa jornada em busca da reparação – ele está além de qualquer redenção. Como um elemento extra de suspense, o ex-buldogue da alfândega americana está com os dias contados por causa de um câncer que o consome por dentro. Marshall, em seu calvário existencial e físico, abandona o Brasil dos cartões postais e atravessa o nosso Nordeste em busca da filha de Nonato, a quem deseja indenizar. Na companhia da prostituta Bia (Cristina Lago), que acaba se tornando sua fiel escudeira, ele cruza o sertão até encontrar a bela região do rio São Francisco, e o objetivo de sua jornada. Bia e Marshall possuem caminhos distintos que, em determinado momento, se cruzam por obra do acaso. Joffily fala que os dois personagens buscam suas origens, sejam elas geográficas ou humanas:

“A Bia não é apenas um personagem funcional na história. Ela vai sendo construída no sentido de entender o que leva uma pessoa a sair de sua casa, abandonar seu passado por um futuro incerto. Ela mesma sai do sertão para o Recife. E depois volta à sua raiz. O americano, faz o caminho inverso, ele sai do seu país para reencontrar sua natureza, o que ele perdeu em sua trajetória de embrutecimento.”

É interessante destacar a interpretação de Halm, que dá contornos distintos a cada dimensão espacial: “a migra é quase uma anti-sala do inferno, e a viagem pelo Nordeste, uma redescoberta que leva ao paraíso”.

Depois da desastrosa era Bush, é inevitável pensar em Marshall como uma metáfora imperialista. Mas, o diretor nunca imaginou o personagem dessa forma:

“Nunca tratei o Marshall (David Rasche) como uma personagem metáfora. A Sandra (Erica Gimpel) e ao Bob (Frank Grillo), que apesar de suas origens negra e latina, agem de forma preconceituosa, revelam que o preconceito não é só de fora para dentro. Ele também age nas entranhas do país.”

É cômodo também imaginar uma estrutura maniqueísta ditada pelo roteiro, mas Paulo Halm não iria subestimar a inteligência do público com didatismos anacrônicos. Joffily reforça esse pensamento:

“Não existem bons nem maus na história. Todos têm razão. O Marshall, alcoólatra e revoltado com a aposentadoria obrigatória, tem razão em muitas de suas falas. Ele está doidão, mas suas considerações estão presentes em corações e mentes americanas. Idem o Nonato (Irandhir Santos). Ele também interpela os oficiais de forma abusada, mas suas falas revelam um julgamento comum a boa parte dos latinos.”

A relativização da verdade também reforça as fronteiras ambíguas que separam direitos e deveres dos protagonistas. Na verdade, o antagonismo é determinado pela força da situação, como bem delineia Halm:

Não existe uma verdade única, todos têm razões diferentes, a verdade se torna um mosaico, vai mudando à medida que o ponto de vista é deslocado. Ela toma a forma tanto do americano quanto dos latinos. O Marshall com toda a sua arrogância quer transformar o último dia dele na imigração num espetáculo. Mas ele perde o controle e a situação acaba se voltando contra ele.”

Destaques do filme, montagem, fotografia – capturada pelas lentes de Nonato Estrela, que explorou com competência as belíssimas paisagens do nordeste brasileiro − e som maravilham os sentidos e criam as condições necessárias para que ocorra a simbiose perfeita entre interpretação e encenação. A edição é definida por Halm como um jogo de espelhos que brinca com a faceta cronológica:

Criamos uma duplicidade de leitura: a ideia de sair do inferno em busca do paraíso. A história é contada em tempos paralelos, criando um jogo dramático interessante. O tempo da migra, mais tenso e agressivo. E o tempo da viagem de Marshall (Recife a Petrolina), num ritmo de observação e percepção.”
A habilidade na utilização do som foi fundamental para definir os espaços e criar identidades para as ambientações, coroando tanto o trabalho de José Moreau Louzeiro como o de Jaques Morelenbaum (trilha sonora), como confirma Joffily:
Assim como no tratamento fotográfico, também no som, procuramos distinguir os dois mundos, reforçar as diferenças também na edição de som: o espaço da migra e o Nordeste. A migra não comportava música, ali, apenas os ruídos deveriam reinar. Caprichamos nesse tipo de sonoridade, dispensando a melodia. A fotografia, a edição de som, a direção de arte, tudo foi numa única direção. A música atonal do Jaques (Morelenbaum), contribuiu generosamente com a ruidagem do filme. De modo que, algumas vezes, fica difícil identificar o que é uma e outra.”

Não há como ficar impassível às violências do filme – a psicológica; a que é imposta pelas circunstâncias de pobreza e privações; e a de fato. E o mais perturbador é perceber que nem toda repressão do mundo é à prova de falhas. Paulo Halm ilustra o discurso vazio do poder:

Ironicamente os únicos que entram nos Estados Unidos estão com droga, os argentinos que são mulas, estão participando do logística do tráfico. Essa ironia torna o discurso do controle vazio e inócuo. Apesar de todo o aparato de controle da migra, o discurso não funciona. Da mesma forma que eles deixaram passar os caras que derrubaram as Torres Gêmeas.”

“Olhos azuis” tem um quê de militância. Muitos vão encará-lo como um libelo contra a intolerância. Nas palavras de Halm, o sinal amarelo está aceso:
“Qualquer pessoa que já viajou para fora do Brasil, passou, em algum grau, por constrangimento. Parece que o viajante cometeu algum crime. Em tese somos meliantes, contrabandistas. Seja na ida, seja na volta, devemos nos submeter a algum tipo de ritual de exceção, somos mal tratados fora e dentro do país. Inevitavelmente qualquer viajante vai passar por algum tipo de desconforto. Ocorre que as metrópoles estão recebendo hordas. Isso é uma bomba relógio.”

Na cena final, Marshall caminha em direção aos braços de Iemanjá e lava nossa alma com o que de melhor surgiu na filmografia nacional este ano. A água salgada deixa um gosto amargo em nossas gargantas, mas desidrata atitudes que escondem horrores, e abre o canal para o diálogo.

 

Carlos Eduardo Bacellar

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